Ao longo das últimas décadas vários setores da sociedade vêm sendo revolucionados pelo avanço da tecnologia digital e, mais recentemente, pelo advento dos chamados sistemas inteligentes. Diariamente usufruímos de forma bem tangível dos benefícios trazidos pela digitalização dos setores de comunicações, medicina, bancário e de entretenimento. Falamos recentemente sobre processamento digital de sinais e suas diversas aplicações e possibilidades mesmo dentro do nosso cotidiano já imerso nesta realidade. Em muitos setores os efeitos da digitalização podem não ser tão aparentes, mas estão igualmente presentes. Qual a relação entre agricultura digital e os alimentos que consumimos todos os dias, por exemplo?
A era da agropecuária digital
Quando pensamos em tecnologia agrícola, talvez as primeiras imagens que vêm à mente sejam as de sistemas de irrigação, grandes tratores, semeadeiras e colheitadeiras de mecânica complexa, e não imagens de computadores, sensores, robôs e drones. No entanto, já há algum tempo vem acontecendo uma verdadeira revolução digital no campo, marcada inicialmente pela adoção de sistemas de informação que modernizaram a gestão do agronegócio. Em um segundo momento, a evolução dos Sistemas de Informações Geográficas (SIGs) e do sensoriamento remoto, principalmente a partir de imagens captadas por satélites e por aerolevantamento, permitiu considerar na gestão de safra a variabilidade espacial e temporal do solo e do clima, não mais tratando toda a lavoura de modo uniforme. Passou-se a ter como objetivo aplicar os insumos agrícolas a taxas variáveis, “na quantidade certa, no lugar certo e na hora certa”.
Atualmente, a agricultura digital utiliza tecnologias como o processamento digital de sinais (de que falamos em outro artigo do CERTI Insights), os sistemas de posicionamento por satélites (dos quais o mais conhecido é o GPS), os sensores inteligentes, a visão computacional e a robótica, que permitem uma adaptabilidade ainda mais refinada às condições locais, até mesmo metro a metro. A eficiência de processos assim obtida proporciona redução de custos e ganhos significativos de produtividade, de qualidade e de agregação de valor aos produtos agropecuários, além de maior sustentabilidade e menor impacto ambiental. Embora o termo mais usado para descrever o uso destas tecnologias no campo seja “agricultura de precisão” ou “agricultura digital”, muitos destes avanços também são aplicáveis à pecuária, podendo-se então falar de forma mais abrangente em “agropecuária digital”.
Dois (ou mais) sensores inteligentes “pensam” melhor que um
Grande parte das informações que alimentam os sistemas de agricultura digital provêm de sensores que medem grandezas físicas relevantes para o controle dos processos de cultivo e criação, tais como sensores de umidade do solo e de incidência solar instalados em plantações, sensores de temperatura em aviários e muitos outros. Na agricultura digital as medições dos sensores tipicamente não são coletadas de forma manual, e sim por telemetria, pois os sensores podem ser dotados de processadores embarcados e sistemas de comunicação que os tornam “inteligentes”, permitindo que realizem localmente parte do processamento dos dados e o acionamento de controles e alarmes, como também que sejam conectados em rede. Estas redes de sensores inteligentes utilizam princípios de metrologia para garantir a confiabilidade das medições, processamento digital de sinais para tratamento dos dados, tecnologias de Internet das Coisas para conexão com a rede, e de Big Data para análise das informações contidas nos grandes volumes de dados gerados. Como exemplos de projetos desenvolvidos pela Fundação CERTI nesta área podemos citar uma rede de sensores inteligentes para monitoramento ambiental e uma boia instrumentada para monitoramento de qualidade da água, que pode ser usada em reservatórios hídricos e na aquicultura.
De grão em grão
Um tipo de sensor amplamente utilizado na agricultura digital é o sensor de imagens, encontrado em câmeras instaladas na lavoura, em viveiros e pastagens, embarcadas em máquinas de beneficiamento dos produtos, ou ainda em aeronaves e drones, e mesmo em telefones celulares. As imagens são tratadas com técnicas de processamento digital que incluem, tipicamente, algoritmos de filtragem, de segmentação, de classificação e de identificação de padrões, com múltiplas finalidades, tais como identificação de pragas, doenças e deficiência de nutrientes, elaboração de mapas de produtividade e rastreamento de objetos. O processamento digital de imagens também encontra aplicação em maquinário para beneficiamento pós-colheita, como nos sistemas de inspeção, seleção e classificação automática de cereais, hortifrutigranjeiros e outros produtos agrícolas, detecção de defeitos e de contaminação química ou biológica e segurança alimentar em geral. Um exemplo de equipamento que utiliza o processamento de imagens são as máquinas para beneficiamento de cereais, capazes de examinar e selecionar ou classificar os grãos um a um à velocidade de até centenas de grãos por segundo, segundo critérios de cor, tamanho, forma ou textura.
O que os olhos não veem, o bolso sente!
Adicionalmente às câmeras convencionais e fotométricas, também são empregados na agricultura digital radiômetros e câmeras com sensores multi- e hiperespectrais, capazes de detectar a radiação eletromagnética com maior resolução espectral e em comprimentos de onda fora do intervalo visível ao olho humano, como o da luz ultravioleta, do infravermelho e mesmo de raios-X. Esta capacidade é de grande interesse para o setor agropecuário, visto que muitas características intrinsecamente relacionadas à produtividade, aos custos e à qualidade da produção são imperceptíveis ao olho humano. Como exemplo de características de interesse podem ser citados o conteúdo de umidade no solo e nas plantas, o vigor vegetativo, a qualidade do pasto, e a ocorrência de doenças ou pragas agrícolas.
É nesse contexto que a aplicação de técnicas de processamento digital a imagens multi- e hiperespectrais coletadas por sensores a bordo de plataformas remotas, como satélites, aeronaves e drones, destaca-se como uma das principais ferramentas de análise e suporte à agricultura digital. O desenvolvimento e aplicação de técnicas de processamento em imagens coletadas em faixas fora do espectro visível permitem a elaboração de diversos índices para a identificação precoce de anomalias, bem como a tomada de ações corretivas durante o processo produtivo, garantindo assim melhor desempenho, redução de custos e redução da pegada hídrica do setor agropecuário. Além disso, uma vez que as câmeras e radiômetros são geralmente embarcados em plataformas remotas, permitem a visão sinótica de grandes áreas de produção, com dados padronizados coletados de forma sistemática, geralmente a um menor custo em comparação a coletas realizadas in loco.
Na pecuária, imagens térmicas geradas por câmeras sensíveis ao infravermelho podem ser usadas, por exemplo, para monitorar a atividade metabólica e o conforto térmico de animais em viveiros, controlando automaticamente o sistema de climatização, e também para a identificação precoce de animais doentes em rebanhos, contribuindo para conter o alastramento de doenças infectocontagiosas, como a febre aftosa. Outros exemplos de imagens não-convencionais são as de fluorescência, usadas para análise química, e as de raios-X e de ressonância magnética, que podem ser usadas para identificar infestações internas e outras deteriorações de produtos não-detectáveis por inspeção externa, embora seu uso seja limitado a algumas aplicações específicas que justifiquem o custo mais elevado e a menor velocidade de imageamento.
Agrobôs e outras máquinas surpreendentes
Além das tecnologias descritas acima, também a robótica e os veículos autônomos e semiautônomos estão cada vez mais presentes na agricultura digital. Robôs agrícolas (ou “agrobôs”) estão sendo desenvolvidos para plantio, aplicação de defensivos agrícolas e fertilizantes, poda e colheita, seja no campo ou em estufas, e alguns já encontram-se disponíveis comercialmente. Por serem menores e mais ágeis, os agrobôs podem evitar a compactação do solo decorrente do uso de maquinário pesado, e realizar operações com maior precisão, como, por exemplo, identificar ervas daninhas e fazer a aplicação precisa de defensivos agrícolas somente sobre elas, ou avaliar o grau de amadurecimento de frutos individuais, retirando apenas aqueles que estão no ponto certo para colheita. Também os drones estão sendo cada vez mais usados na agropecuária em funções que vão além da captação de imagens descrita acima, como, por exemplo, para liberar sobre lavouras certos insetos usados como agentes de controle biológico de pragas.
As máquinas agrícolas autônomas tipicamente utilizam o GPS para seguir trajetos pré-programados, além de câmeras, sonares, radares, lidares (radares a laser) e outros sensores para identificar e contornar obstáculos encontrados ao longo do percurso. Há também máquinas semiautônomas, igualmente dotadas de piloto automático, mas que necessitam da supervisão de um operador para lidar com trajetos mais problemáticos e situações imprevistas. Entre as áreas de competência da CERTI para o desenvolvimento de implementos agrícolas avançados encontram-se a metrologia e instrumentação, o projeto e execução de mecatrônica, o desenvolvimento de sistemas embarcados e o processamento digital de imagens, empregado nos sistemas de visão computacional.